A Bíblia, no livro de Apocalipse, fala sobre um grupo muito específico de pessoas: os 144 mil escolhidos. Selados por Deus, puros, fiéis, irrepreensíveis e comprometidos com a verdade, eles aparecem como símbolos de uma humanidade redimida e preparada para seguir o Cordeiro — Cristo — por onde quer que vá. Esse trecho tem sido interpretado por teólogos, estudiosos e fiéis ao longo de séculos, e continua gerando debates profundos, especialmente sobre quem seriam essas pessoas.
Em tempos mais recentes, com o aumento da visibilidade sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA), uma nova pergunta tem surgido em círculos espirituais e entre famílias religiosas: haveria alguma ligação entre os autistas e os 144 mil escolhidos?
Do ponto de vista teológico ortodoxo, a resposta é não. A Bíblia não menciona o autismo nem estabelece qualquer relação entre uma condição neurológica e esse grupo específico de escolhidos. Os 144 mil são apresentados como simbólicos ou literais, a depender da interpretação, mas não há nenhuma base escriturística que relacione essas figuras aos autistas.
No entanto, do ponto de vista espiritual e humano, a pergunta ganha outra profundidade. Isso porque muitos pais, mães, educadores, cuidadores e religiosos que convivem com pessoas autistas relatam percepções que vão além da ciência médica. Eles enxergam nesses indivíduos características notáveis de pureza, sinceridade extrema, aversão à mentira, incapacidade de manipular e uma forma única — muitas vezes profunda e intensa — de viver a verdade.
A Bíblia diz que os 144 mil “não se deixaram contaminar”, que “na sua boca não se achou engano”, e que “seguem o Cordeiro por onde quer que vá” (Apocalipse 14:1–5). Essas são qualidades que, embora não exclusivas, são frequentemente percebidas em muitas pessoas no espectro autista: a fidelidade ao que é justo, a dificuldade de se ajustar às hipocrisias sociais, a conexão com uma verdade pessoal inegociável.
Autistas muitas vezes não usam máscaras sociais. Eles podem demonstrar com sinceridade o que sentem, sem filtros impostos por convenções. Para alguns, isso pode parecer inadequação. Para outros, isso é autenticidade em estado bruto — um valor espiritual raríssimo em um mundo onde mentir, disfarçar e agradar se tornaram quase uma norma social.
Isso não quer dizer que pessoas com TEA sejam “anjos” ou “especiais” no sentido místico que costuma ser romantizado. O autismo é uma condição complexa, com desafios reais de comunicação, interação social e adaptação sensorial. Exigir pureza angelical de pessoas autistas é injusto. Contudo, a maneira como muitos vivem — com coerência, sinceridade, hiperfoco e resistência ao erro socialmente aceito — faz com que alguns pais e líderes espirituais se perguntem: será que há algo de divino nesse jeito de ser?
Essa reflexão não propõe criar uma nova doutrina, nem espiritualizar uma condição médica. Mas propõe olhar para o diferente com mais reverência e menos julgamento. Sugere que talvez os escolhidos de Deus, ontem como hoje, não sejam aqueles que se destacam por cargos, títulos, aparência ou discursos, mas sim aqueles que, em sua essência, vivem uma verdade que o mundo não consegue compreender.
Talvez os 144 mil do Apocalipse estejam espalhados pelo mundo, em corpos e mentes que não seguem o “normal”, mas sim o essencial. Talvez entre eles haja quem nunca tenha dito uma palavra, mas que nunca mentiu. Quem nunca entendeu ironia, mas vive em profunda coerência. Quem não participa de igrejas, mas carrega uma alma irrepreensível. E talvez, só talvez, alguns desses sejam autistas.
A nós cabe o dever de cuidar, respeitar, acolher e aprender com essas pessoas — não como santos, mas como espelhos da humanidade que precisamos recuperar: uma humanidade onde a verdade, a lealdade e a integridade não sejam exceção, mas vocação.
Mín. 14° Máx. 24°